segunda-feira, abril 06, 2009

Peixe Morto

Esse é o nome do livro que pretendo publicar em breve. Como não tenho nada de interessante pra postar, deixo o primeiro capítulo dele para o julgamento de vocês. Aguardo ansiosamente opiniões, quaisquer que sejam. Também espero não ter postado isso antes...


“Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais.”

Thomas Hobbes, Leviatã


Não entendo como ainda insisto em me enfiar nos navios. Todas as vezes que entro nessas porcarias, minhas entranhas refluem numa vaga pior que as ondas mais fortes de todos os oceanos...

É humilhante vomitar na frente dos outros. Não fosse o imperador, teria ficado na casa do Barão mesmo, ainda que a possibilidade me enjoe mais que o mar. Vida de bordo é uma maçada! Tão desgraçada quanto a de contador do Plácido. Tempos idos... Quanto faz? Dez, quinze dias, um mês. Ou um ano, quem sabe. Poderia ter sido há décadas atrás que não me daria conta.

Aquelas duas não param de me olhar e rir... Devem estar se divertindo com o meu mal-estar. Maldito enjôo! Se pudesse, arrancaria meu estômago com minhas próprias mãos para atirá-lo aos peixes. Assim ele teria mais serventia que a atual. Dor... Se elas sumissem daqui ao menos.

E onde está D. Pedro que não o vejo mais? Não é possível que tenha se metido na cabine pra dormir. Em plena tarde!... Nunca vi sujeito mais descansado.

Agora chega! Não vou ficar aqui pondo meus intestinos pra fora somente para o gozo desses parasitas e agregados.

Melhor caminhar um pouco...

Quanto falta pra chegar? Não vejo a hora do pôr os pés na terra. Se pelo menos, pudesse fazer algo melhor que esvaziar o bucho à força... Vida desgraçada!

Foi aquele jantar indigesto que me estragou o estômago. Como o imperador pôde se meter na casa do Barão daquele jeito sem precaução nenhuma? Deveria saber muito bem que o sujeito não é dos mais cândidos. Homem que manda praticamente em quase toda a província, por lógica não pode ser manso. Foi escolha dele. E eu tive que seguir também. Como bom imbecil que se mete em navios sem saber como e porquê. Apenas pelo gosto do novo.

Pensando bem, nem me lembro como cheguei até aqui. Numa hora estava examinando as contas e compromissos do Plácido, noutra me vejo num vapor indo para a corte. E com o imperador junto, vejam só!... Se isso for sorte espero que ela não acabe tão cedo. Que dure o resto da minha vida, levando minha carcaça para lugares parecidos com o que estou indo.

“Boa tarde, senhor Ataúfo! Como está sentindo a viagem?”

“Muito bem, apesar dos desconfortos corriqueiros. Só queria saber quando o imperador irá se juntar a nós. Ele não está passando mal, está?”

“Não, só dorme um pouco. Em pouco tempo estará de volta em nossa companhia. Mas e você? Vi que não se sente bem desde que chegamos à casa do senhor Barão. Aconteceu alguma coisa por lá?”

Aconteceu que tive que suportar sua presença desagradável, Matias! Dois incômodos num mesmo lugar e ao mesmo tempo.

“Não aconteceu nada. Só uma indisposição de mar. Passa com o tempo.”

“Se você diz... Olhe, a maioria das pessoas estão reunidas no refeitório. Por que não vai lá também?”.

“Vá na frente que vou tentar melhorar um pouco. Em um minuto estarei com todos.”

“Até, então.”

“Até...”

Efeminado filho de uma cobra! Pensa que não sei que me jogaria ao mar se lhe dessem a chance? Pois eu não vou te dar esse gosto. Pode esquecer! Antes morrer pondo as tripas pra fora que encarar esse seu rosto de abutre faminto. Nunca!

Ai, meu estômago! Gostaria que esse enjôo parasse.

Nem quando cheguei a Vitória senti um desconforto tão grande. Deve ser coisa da idade. Fica-se mais velho e mais sensível às dores do corpo com o tempo. Imagino que seria muito bom se encontrassem a tal fonte da juventude. Assim ninguém precisaria mais morrer... Então, o mundo seria composto eternamente das mesmas pessoas o tempo todo. Pois se, não mais se podendo morrer, a reprodução perde sua utilidade... E para sempre sujeitos abomináveis como o Matias existiriam!... Uma pessoa com a qual não simpatizei desde o começo. Definitivamente, devo parar de pensar nessas coisas. Melhor ir ao refeitório e conversar, que ficar sozinho já está me fazendo mais mal que o mar.

O navio está muito mais quieto que dias antes. Gostaria de saber quanto falta para chegarmos. Adoraria pisar em chão firme novamente. Bem, estão todos aqui.

“Boa tarde, amigos. Desculpe não ter vindo antes, pois estou tendo uns problemas com a viagem.”

“Já contei a todos que o você está enjoado por causa do navio. Não precisa se preocupar.”

“Obrigado Matias.”

Cobra!... O que tem o meu estômago com a conversa? Ainda esgano esse sujeitinho!

“Por favor, senhor Ataúfo, sente-se aqui.”

“Muita gentileza de sua parte. E, desculpe, mas parece que não fomos apresentados.”

“Domingas Figueira, muito prazer.”

“Ataúfo Álvares de Souza, embora acho que me apresentar seja dispensável, posto que já me conhece.”

“Ora, todos aqui te conhecem. O senhor que embarcou em Vitória sob ordem expressa do imperador. Não sabe quantas pessoas deixou morrendo de inveja na sua cidade!”

“Na verdade não é minha cidade. Moro lá há alguns anos, mas não sou natural do lugar.”

“E de quê lugar é natural, posso saber?”

“Nenhum que mereça ser mencionado. Principalmente à dona tão distinta e bem apresentada quanto a senhora.”

“Obrigada!”

“Só digo a verdade.”

Em verdade é uma dona muito interessante, embora o nome não seja dos melhores. Contudo, quem é que se importa com nomes quando as coisas passam para o quarto? Talvez o idiota do Matias...

“...assim acho, que a questão dos ingleses deve ser atacada de maneira mais contundente. Como pode essa gente se meter nos negócios do Brasil sem que o olho de ninguém os vigie? Temos que dar um freio a esse povo antes que eles tomem o país para si! O que acha, senhor Ataúfo?”

Acho que deve calar a boca o mais rápido possível e me deixar em paz, Matias! Prefiro pensar nas questões de Domingas. Com certeza ela tem muito mais atrativos que essa conversa enfadonha sobre ingleses, franceses ou que diabo de gente dá com os chifres neste país. Ficassem no buraco deles!

“Então, senhor Ataúfo, estou curiosa para saber a sua opinião.”

“Não imaginava que se interessasse em assuntos de comércio! Parece ser uma moça que gosta de coisas menos áridas. Creio que me enganei.”

“Só um pouco. Quem vive disso é o meu pai... Desculpe, meu pai, Conselheiro Barroso.”

“Prazer...”

“Igualmente. Não dê tanta importância a esta menina. Ela só quer se divertir um pouco.”

“Mas eu gosto da conversa...”

“Então, Ataúfo, gostaríamos de saber o que pensa.”

Não há mesmo alternativa. O remédio é falar. Enfim...

“Muito bem... Entendo que nossos ministros estão dando conta de tudo da melhor forma que eles vislumbram. Mas não acho que a presença de estrangeiros seja tão má assim. Não fossem eles, nossas lavouras ainda estariam produzindo do mesmo modo que se fazia no tempo da colônia. Porém, imagino que o melhor para responder isso seja o imperador em pessoa. Por que não faz essa pergunta quando ele estiver aqui?”

“Mas imaginei que o senhor, uma vez sendo homem criado dentro do comércio, poderia dar uma opinião mais especializada.”

“Sinto, neste assunto não domino nem a menor das partes.”

Quando é que esse sujeito vai deixar de me perseguir? Até agora parece que não engoliu o fato de eu estar aqui, junto de todos esses parasitas. Imagino que ele vê em mim algo de perigoso para o seu ato de melhor arrancar do imperador suas vontades mesquinhas. E por quê logo eu? Porque, mesmo não sendo um igual a eles, meti-me num vapor onde o próprio D. Pedro viaja? Domingas falou que muitos têm inveja de mim... Será que ela também não suporta a minha presença? Não, tem um jeito muito gentil para um sentimento tão pequeno desses! Quanto a esse Matias. Homem que parece não ter entranhas!... Domingas tem um sorriso muito bonito... Quantos anos deverá ter? Com certeza ainda muito moça. E bonita... Melhor deixar de pensar nisso por enquanto.

“Senhor Ataúfo?”

“Sim?”

“Desculpe, nós estávamos tentando falar com o senhor só que não nos respondeu. Parecia distraído.”

“Deve ser coisa do estômago, não é mesmo?”

“É, deve ser. Obrigado por se importar, Matias.”

Na primeira chance que tiver, esgano esse miserável!

“Então, o que pretende fazer quando chegar à corte? Penso que nunca tenha visitado o Rio de Janeiro antes, não é?”

“Realmente, nunca. Mas sempre tive sorte na vida. Não tenho medo do que não conheço. O que me preocupa são as coisas que eu conheço e sei de que são capazes.”

“Tenho certeza que o senhor vai gostar de nossa cidade. Não há mais linda neste país. Pode ser que estranhe um pouco a movimentação, pois em Vitória percebi que nada de muito interessante acontece normalmente.”

“É uma cidade muito parada, senhora Domingas. Na verdade, quase uma vila. As coisas mais interessantes que acontecem por lá são as festas de santos. O resto do ano o que fazemos é trabalhar e sentir o cheiro dos peixes mortos na praia.”

“Um lugar muito parado mesmo... E me diga, em que exatamente se ocupava o senhor quando lá residia?”

“Muito bem... Eu trabalhava como uma espécie de ajudante geral ou coisa que o valha. Dizendo de maneira resumida, posso falar que ajudava meu patrão em quase tudo que lhe era necessário. Várias vezes tive que estabelecer uma lista de compra e venda além de sempre zelar pelas finanças. Isso entre uma infinidade de coisas...”

Uma infinidade de coisas... Helena... Uma infinidade delas transitando em minha mente...Quando é que D. Pedro vai acordar? Não aquento mais essa gente toda olhando pra mim. Detesto ser o centro das atenções. Sinto que vão me comer vivo quando isso acontece. Pelo menos com o imperador aqui, todos esses olhos maliciosos voltam-se nele. Será que Domingas também não me suporta? Tão educada!... Melhor continuar com o olho vivo enquanto estiver embarcado aqui.

Helena...

“Muito boa tarde, majestade! Vejo que acordou mais bem disposto.”

“Boa tarde, Matias. E a todos. Como vão? E o senhor, Ataúfo, sente-se melhor?”

“Muito melhor, majestade. Me honra sua preocupação.”