domingo, setembro 17, 2006

Crônica de um Ladrão de Almas.

Pois é, esse é o título de uma história que eu estou escrevendo. Resolvi por o primeiro capítulo aqui para saber da opinião de quem olha este blog - espero que não sejam só os três que imagino.

Então lá vai:


Começa com Antônio Costa. Ele, sentado numa mesa de botequim em frente à calçada, bebericando uma cerveja enquanto espera o trânsito da avenida diminuir. Deveria ter pego o ônibus há meia hora atrás, mas o fluxo de carros era tanto que pensou ser melhor esperar um pouco até que as coisas se normalizassem. De mais a mais, tem apenas um irmão em casa que não deve ter a menor pressa de sua chegada, quase certo a noiva deste estar lá neste exato momento... Logo, não vê mal nenhum em ter sentado naquela mesa e pedir uma garrafa da cerveja mais gelada que o garçom pode trazer, pois além de tudo fazia um calor de fornalha.

Enquanto vai bebendo olha meio desatendo os carros e ônibus que a todo custo tentam passar pelo espaço onde deveria caber no máximo um terço deles. Mas é comum ao fim do dia todas as avenidas, ruas, alamedas e qualquer outro lugar destinado à passagem de veículos automotivos estar completamente cheio deles até exceder a capacidade de trânsito desses lugares. E com a infinidade de carros vinha o barulho das buzinas, os gritos dos motoristas impacientes, o ronco ensurdecedor de algumas motos, apitos de guardas de trânsito. Isso sem falar da costumeira balbúrdia dos pedestres, sempre falando alto em meio a vendedores ambulantes de vozes tão possantes quanto buzinas e o burburinho das conversas que vão e vem em frente a Antônio e sua garrafa de cerveja já passada da metade.

Sim, fazia um grande barulho na avenida. Um pouco fora do usual para aquele dia e horário, pensa Antônio. Talvez algum evento que ele não soubesse, ou coisa assim fosse o causador. De qualquer modo, não estava muito interessado em pensar no que estaria causando a parada quase total do tráfego ali, desde que houvesse menos carros ao fim da cerveja que já estava para acabar.

Um casal de namorados entra no bar e senta-se na mesa quase ao seu lado. A moça parece tímida e o tempo todo leva a mão à orelha, puxando-a. Antônio diverte-se vendo a mão da menina puxar insistentemente o lóbulo. Dora nunca puxou a orelha assim quando eles sentavam-se num bar para conversar...

A cerveja acabou. O movimento dos carros não mudou nada nesse tempo. Pede outra. A última, diz ao garçom. Os carros da rua estão num movimento muito lento, a ponto de parar. Na sua frente aparece um sujeito que, aos berros, diz comprar ouro, pequenas jóias e outras quinquilharias. Grita para todos na rua como um possesso, como se competisse com o zunido das buzinas dos carros e dos vendedores mais à frente. Antônio volta a prestar atenção no movimento da moça. O barulho é tanto que não consegue ouvir a conversa do casal que está logo ao seu lado, embora somente tivesse olhos para a mão esquerda da moça puxando a orelha. Atrás vinha o garçom com a cerveja, sem que ele percebesse. Na rua os carros pararam. Também não conseguia mais ouvir o som deles que fora abafado pelos gritos do homem ali perto. Contudo deste também não parecia mais vir som algum, quem sabe engolfado pelo burburinho da calçada que Antônio também não ouvia. Com seus olhos postos fixamente na orelha da menina não percebe a chegada do garçom. Só dá pela sua presença no momento em que este abre a garrafa e o fraco som da pressão libertada o traz à realidade. Lá fora o homem continua a berrar acompanhado dos carros e tudo o mais.

O casal passou para uma mesa ao fundo. O namorado percebera os olhares de Antônio. Com uma segunda garrafa de cerveja cheia ele volta a olhar a rua. Na orelha esquerda começa a sentir uma leve coceira.

“Hora complicada, não é?”

“Pois é... Faz tempo que não vejo um engarrafamento desses. Deve ter acontecido algum acidente.”

“Engraçado que faz tanto barulho que eu cheguei a não escutar nada agorinha mesmo...”

“Mas está uma merda de bagunça lá fora! Mesmo enfiando forte os dedos nos ouvidos não dá nem pra fingir que não tem...”

“É... Talvez eu esteja com o ouvido ruim.”

O garçom vai para outra mesa. Antônio não conseguiu puxar conversa como gostaria. Sentiu-se idiota por começar com essa história de não ouvir nada, como se fosse um doido. Claro que aquele barulho desgraçado não havia cessado de repente. E ainda por cima só pra ele! De qualquer modo, apressa a cerveja. Está há muito tempo parado ali e, por mais que o irmão goste de ficar sozinho com a noiva em casa, precisava de um banho para limpar aquela poeira de rua toda em cima dele.

A coceira na orelha não parava. Sem perceber começou a fazer praticamente os mesmos movimentos da moça antes. Sem perceber engoliu quase de um só gole a garrafa e um pouco tonto pagou ao garçom e foi embora, deixando-o com um sorriso de pena para ele. Com certeza parecia um sujeito desorientado...

Na rua, tinha a impressão de que o barulho não era tão intenso quanto há poucos momentos atrás. Os carros fluíam normalmente pela avenida, até com certa velocidade. Mesmo as pessoas estavam um pouco mais quietas. Todo mundo cansado do trabalho e sem vontade de falar nada, pensou. Seu ônibus estava parado mais à frente. Correu até ele e entrou, apertando-se junto com as outras pessoas.

Já estava bem escuro agora. Na sua frente, uma mulher dormia com a cabeça recostada no vidro da janela. Parecia não dar importância para toda aquela gente espremida logo ao seu lado. Olhando aquela mulher, Antônio passou a sentir-se realmente cansado, quase a ponto de dormir em pé. Forçava para manter os olhos abertos. A coceira na orelha ainda incomodava, embora não pudesse tirar as mãos das barras dos bancos.

Começou a cambalear de sono quando alguém o empurrou com força.

“Vá dormir na cama, rapaz.” Foi o que lhe disseram.

2 comentários:

. disse...

Muito bom MIchel! Vai colocar mais?

. disse...

Mais!